Não vou me estender sobre os danos que a PEC do teto dos gastos, ou "PEC da morte" como preferem chamar os oposicionistas, vão causar sobre o sistema público de saúde, o SUS. Vários colunistas, como meus colegas Bernardo Mello Franco e Vinicius Torres Freire, já o fizeram com maestria, citando estudos que demonstram muito bem o impacto da medida.
Um deles, do Ipea, instituto ligado ao Ministério do Planejamento, sustenta que a PEC 241 trará ao setor perdas de até R$ 743 bilhões se as despesas forem congeladas por 20 anos, como prevê a proposta.
A questão é de base. Os recursos para a saúde pública no Brasil já são poucos. O país gasta, por exemplo, a metade que a vizinha Argentina. São US$ 591 (aproximadamente R$ 1.900) per capita contra US$ 1.167 (cerca de R$ 3.750). Se compararmos com os EUA, a distância é de perder de vista (US$ 4.307, aproximadamente R$ 13.800). Ou seja, partir do pressuposto de que os recursos públicos para a saúde já estão em níveis adequados é muita sacanagem.
Também de nada adianta o refresco prometido por Michel Temer de deixar as mudanças das áreas de saúde e educação para 2018. É como colocar o doente terminal ligado a um respirador artificial na UTI por mais um ano.
Sem contar que ninguém lembra que a saúde tem uma dinâmica própria. Sua "inflação" chega a ser quase o dobro da oficial por fatores como a adoção de novas tecnologias. Isso acontece em todo o mundo e já foi demonstrado em vários estudos. Deixar de lado esse dado é uma tremenda sacanagem.
O plano do Planalto também ignora as muitas transições enfrentadas pelo país. A começar pela atual crise econômica que está levando muita gente a perder seus empregos, e, obviamente, seus planos de saúde, e ter que bater nas portas do já superlotado SUS. No último ano, são quase 2 milhões de usuários nessa situação.
Uma das transições mais impactantes será a demográfica/epidemiológica. O Brasil está envelhecendo muito rapidamente, praticamente na metade do tempo que a França levou para concluir esse processo, segundo demonstrou o médico Alexandre Kalache na semana passada, durante o Fórum Internacional de Longevidade, que ocorreu no Rio de Janeiro.
A participação dos idosos deve saltar de 12,1% para 21,5% nos próximos 20 anos, e a carga de doenças crônicas, como hipertensão, diabetes, artroses e o próprio câncer, deve aumentar em muito os gastos e a necessidade de restruturação dos sistemas de saúde.
O pior é que ainda nem resolvemos a carga das doenças infecciosas. Zika, dengue e chikungunya estão aí para mostrar que não brincam em serviço.
Não há dúvida da urgência em equilibrar as contas públicas, já que estamos vivendo a pior recessão da nossa história. O país está literalmente quebrado. Também não resta dúvida de que é preciso aumentar a eficiência do gasto estatal e estancar os recursos drenados pela corrupção ativa e passiva.
Mas, até o momento, o que se vê na PEC 241 é um "corte na carne" no lombo dos mais pobres. Ela não toca em outras medidas igualmente necessárias, como fim de certos privilégios. Alguém viu, por exemplo, alguma proposta de reforma tributária que mexa nos bolsos dos mais ricos, que detêm uma fatia muito grande da renda nacional e pagam, proporcionalmente, muito pouco de impostos?
"Por que não taxar melhor os 71 mil brasileiros mais ricos? Eles ganharam, em média, 4,1 milhões de reais no ano de 2013 e estão submetidos a uma carga tributária efetiva inferior a 7%", questionou o ex-ministro da Saúde José Gomes Temporão, em entrevista à "CartaCapital".
Segundo ele, o Brasil é um dos raros países do mundo que isentam empresários de pagar impostos sobre lucros e dividendos. Dos 34 países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, apenas México, Eslováquia e Estônia seguem essa tendência. Ou seja, a empresa paga o seu imposto, mas a pessoa física, quando declara essa renda, não é tributada.
Mas isso permaneceu intocado mesmo nos governos petistas, de Lula e Dilma Rousseff. Bem na verdade, nem dá para chamar isso de proposta socialista. Os EUA exemplificam bem. Lá, a arrecadação provém de rendimentos de capital e a parcela menor de salários e bens e serviços. Aqui, quem mais paga imposto é o assalariado (desconto em folha de pagamento) e o consumidor (imposto sobre bens e serviços).
Em relação à saúde, a briga agora será por um pedaço do cobertor curtíssimo.
Como explicou Vinicius Torres Freire, caso o governo decida aumentar a despesa com saúde, terá que tirar dinheiro de outros itens, já que agora cada item da despesa federal vai "brigar" com outro. Preparam-se: será uma briga longa e sangrenta.
Cláudia Collucci é colunista da Folha de S. Paulo