Que políticos das esferas federal, estadual e municipal agissem para desviar o foco de sua corresponsabilidade pelo incêndio e desabamento do prédio no Largo do Paissandu, no Centro de São Paulo, culpando os ocupantes, era esperado. Eles são ou foram parte do problema ao não efetivar políticas para garantir o acesso dos mais pobres à moradia. Afinal, as pessoas apenas ocupam um local precário e sem condições de habitação como último recurso e não por prazer.
Que grupos aproveitariam este momento para generalizar e culpar todas as organizações que lutam por moradia pelo ocorrido também era previsto. Há um naco que não está preocupado com as vítimas, mas (sempre que pode) atua para criminalizar toda e qualquer ocupação de propriedade – mesmo que esta não cumpra sua função social em um país com um déficit de 6,2 milhões de moradias. Usam a tragédia para convencer que toda ocupação é feita por movimentos criminosos que exploram as pessoas e causam incêndios – o que é uma falácia.
Que há falsos movimentos e organizações que lucram com a pobreza alheia, isso não é novidade. Há organizações na área de moradia que cobram de seus membros além do necessário para manter os espaços e levar adiante as atividades comuns, transformando a pobreza em um bom negócio. Aliás, sempre foi um dos grandes problemas para os movimentos e organizações sérios a presença daqueles que mancham a luta – há matérias e mais matérias sobre isso. Da mesma forma que há empresários honestos e picaretas, existem organizações sociais honestas e picaretas. Mas um problema é a justa luta por moradia. Outro é combater quem lucra, politicamente e economicamente, com a pobreza. São desafios diferentes, que precisam ser enfrentados, um sem prejuízo do outro.
Arrisco a dizer que a maior parte da população paulistana ficou comovida com o que aconteceu e muita gente, dentro de suas possibilidades, correu para prestar auxílio – doando roupas, comida e dinheiro, ajudando com alojamentos, indo prestar ajuda com quem perdeu tudo, dando um abraço de solidariedade.
Mas um grupo de pessoas tem culpado as vítimas pelo ocorrido por outra razão. "Se não tivessem invadido um prédio, nada disso aconteceria com elas" é o tipo de declaração que me faz perder um pouco de fé na humanidade. Essas pessoas são as mesmas que dizem "plantaram o que colheram" quando uma favela em terreno ocupado arde em chamas, consumindo barracos e ceifando vidas. Ou que sentem que "a Justiça foi feita" quando ocorre uma desocupação forçada na base da porrada policial, como a do Pinherinho, em janeiro de 2012.
"Trabalhei a vida inteira e nunca tive uma casa própria. Agora, vem um bando de desocupado e invade um prédio ou terreno para chamar de seu? A polícia tem que descer o cacete nesse povo para aprender que patrimônio só surge do suor e do trabalho." Nem os próprios donos dos prédios e dos terrenos vazios conseguem ser tão virulentos assim.
De todas as ideias sem sentido, uma das piores é o pensamento do "se me estrepei a vida inteira, todo mundo tem que se estrepar também". Ele representa o melhor da filosofia "Para o Buraco, Eu Não Vou Sozinho", muito conhecida desde que o primeiro hominídeo andou de pé, tropeçou e, para não cair sozinho de bunda no chão, arrastou o companheiro junto. Filosofia que, a cada dia, vai se aprofundando em sociedades desiguais, consumistas e individualistas como a nossa.
Quem pensa assim, não compreende que uma sociedade evolui, ou seja, que as geracões seguintes não precisam passar pelos mesmos sacrifícios das anteriores. E não entende, nem desenhando, que moradia, alimentação, educação, saúde são direitos fundamentais. E, nessa hora, brada: "E esses vagabundos pagam impostos como eu para poderem ter direito a direitos fundamentais?"
Parte dessas pessoas, irritadas com um suposto "favorecimento" dos sem-teto diante do restante, aproveitou o momento e se apropriou dos discurso de criminalização para provar sua tese de que esses "vagabundos" só podem ser "criminosos".
Querem fazer crer que a principal tragédia não é que 150 famílias morassem de forma precária em um prédio que era uma fogueira pronta para queimar, convivendo com ratos e baratas, e, ainda por cima, tendo que pagar um valor sem que sentissem os benefícios sendo revertidos para si. A tragédia, para eles, é a cobrança de mensalidade. Isso é um outro problema, grave, que precisa ser combatido. Mas tragédia mesmo, como sociedade, é termos deixado essas pessoas à própria sorte, naquelas condições. A existência de gente desonesta em certos movimentos não cria um déficit de 500 a 700 mil moradias em São Paulo. Mas o desespero pela falta de um lar joga muita gente no colo de aproveitadores.
Valores passados cuidadosamente e ao longo do tempo vão colando nos ossos da classe trabalhadora e transformando-a em guerreira da causa alheia. Não ganhamos nada com isso, pelo contrário, perdemos. Como cidadãos, como seres humanos. Mas preferimos defender o não-uso de uma propriedade privada do que a dignidade do ser humano. Tudo em nome de uma concepção equivocada de Justiça. A polícia e os políticos não são os únicos responsáveis por manter a ordem do povo. O povo, devidamente treinado por instituições como escolas, igrejas, trabalho e a própria mídia garante o seu próprio controle e o monitoramento no dia a dia. Quem sai da linha do que é visto como o padrão e o normal, leva na cabeça.
Como já disse aqui ontem, não é uma responsabilidade individual minha ou sua tomar cada pessoa em situação de rua ou sem-teto pelo braço e levá-los para casa. Já a construção participativa de saídas é um dever coletivo que tem no Estado o ator principal.
O poder público vai, agora, acelerar as reintegrações de posse. Poderia se dedicar a um programa forte de moradia, envolvendo as três esferas. Mas, infelizmente, não vai. Não é prioridade.
Deveríamos todos estar agora exigindo das autoridades que um dos vários prédios vazios e cheios de dívidas de IPTU fosse rapidamente desapropriado, reformado e destinado às vítimas da tragédia do Paissandu. Ou algum prédio desocupado pertencente ao patrimônio público passasse pelo mesmo processo e fosse entregue a eles. Mas, montados em sua mesquinhez, muitos preferem apenas dizer "bem feito".
Leonardo Sakamoto é jornalista e articulista do UOL