Todo dia o bolsonarismo difunde teses delirantes como a de que não houve ditadura no Brasil ou a de que o nazismo era de esquerda. Ninguém fora do círculo de fanáticos parece levar essas bobagens a sério, mas a situação pode mudar, já que as afirmações estão inseridas em uma ambiciosa estratégia de redefinir o normal.
O que as teses têm em comum não é apenas a divergência com o discernimento profissional de historiadores, filósofos e politólogos, mas o projeto de desbancar o juízo esclarecido, colocando-se como o novo senso comum.
Em entrevista na TV, na última quarta-feira (27), Bolsonaro afirmou que, como houve entrega pacífica do poder dos militares para os civis, não teria havido uma ditadura no Brasil a partir de 1964.
A tese não tem o menor respaldo na historiografia ou na ciência política, já que a cassação de políticos, a supressão de eleições, a censura e a perseguição a dissidentes são justamente os traços que caracterizam uma ditadura.
Num tuíte no começo de março, Olavo de Carvalho disse que em todo o Brasil não existe nenhum professor universitário qualificado para debater com ele.
Embora sua obra filosófica seja considerada primária e amadora pela filosofia profissional e o artigo que considera sua principal contribuição à filosofia nem sequer tenha sido aceito para publicação, ele acredita que sua megalomania e o reconhecimento de discípulos leigos seriam respaldo suficiente para se considerar o maior intelectual do país.
Em artigo no seu blog, no último sábado (30), o chanceler Ernesto Araújo afirmou que o nazismo “tinha traços fundamentais que recomendam classificá-lo na esquerda do espectro político”. Aqui também toda a historiografia profissional considera a tese absurda, já que o nazismo, desde a sua fundação, se colocou em oposição à esquerda.
Em aula na Assembleia Legislativa de São Paulo, em outubro do ano passado, o hoje deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL) apresentou uma classificação do espectro político brasileiro que considerava o DEM, de Ronaldo Caiado, e o PP, de Maluf, como sendo “de esquerda”, deixando para a direita apenas o PSL e o Novo.
Embora ninguém na ciência política ou nos demais partidos considere essa classificação aceitável, ele pode apresentá-la respaldado apenas pelo sentimento de renovação política.
Todos esses episódios manifestam o projeto de fazer com que um entendimento excêntrico aglutine força popular de tal magnitude que consiga gerar força gravitacional para desbancar o juízo estabelecido e fazer o mundo político orbitar em torno de si.
Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP e doutor em filosofia