Artigo

Opinião: Bolsonaro mente na ONU, como costuma mentir no Brasil

Opinião: Bolsonaro mente na ONU, como costuma mentir no Brasil
Notícias

Bolsonaro contou um combo de mentiras durante seu discurso, na abertura da Assembleia Geral da Nações Unidas, nesta terça (22). Culpou "índios" e "caboclos" pelos incêndios na Amazônia, livrando a barra de grileiros e pecuaristas; isentou a si mesmo de responsabilidade pela desastrosa política contra a covid-19, terceirizando a culpa para governadores; disse que adotava uma política de tolerância zero contra crimes ambientais quando, na verdade, seu governo faz o contrário: ataca servidores públicos do Ibama e Instituto Chico Mendes que tentam cumprir a lei.

Nenhuma novidade. Cada uma das mentiras contada por Bolsonaro é velha conhecida dos brasileiros e tem sido repetida à exaustão.

Discursos nas Nações Unidas de chefes de Estado internacionalmente irrelevantes e que são vistos como tributários de outros governos, como é o caso de Jair, são pensados mais ao público interno. No caso dele, o falatório foi direcionado ao bolsonarismo-raiz, aquele naco de 12% a 16% que tem atuado como guardião de seu governo.

O fato é que da mesma forma que Bolsonaro usou mentiras em seus mandatos como deputado federal e na campanha à Presidência da República, também tem as utilizado como instrumento de sua administração. Ou seja, a mentira tem método e não serve apenas para se livrar de acusações.

E o método tem funcionado.

Não importam fotos e vídeos da Amazônia e do Pantanal queimando, imagens de satélites com milhares pontos de calor comendo a região e relatos do inferno colhidos de indígenas, ribeirinhos e moradores de cidades. Bolsonaro aposta que a construção da realidade não brota de fatos, mas da narrativa que sai de sua boca. E, em sua narrativa, o salvo-conduto que ele entregou a quem depreda o meio ambiente não se traduz em destruição.

Com isso, o presidente afirma gostar da passagem bíblica do "Conhecereis a verdade e ela vos libertará" (Evangelho de João capítulo 8, versículo 32), mas parece, de fato, se identificar com "Eu sou o caminho, a verdade e a vida" (João, de novo, capítulo 14, versículo 6).

Há colegas jornalistas com pudor de dizer abertamente "o presidente mente", acreditando que isso extrapola o papel da imprensa. Mas quando a mentira é usada como instrumento de governo, evitar a expressão torna-se um desserviço.

Contadas à exaustão, as mentiras do presidente tornam-se farol e norte para milhões de fãs e seguidores. Ele não precisa que o Brasil inteiro acredite nelas, apenas que sejam repetidas por uma parcela de ingênuos e outra de pessoas de caráter duvidoso, fortalecendo o seu nicho ruidoso de apoiadores.

Todo governante mente, da esquerda à direita. A questão é quando isso se torna parte estrutural de uma gestão para refutar quaisquer fatos e dados comprovados que estejam na contramão dos desejos do presidente.

Quando a mentira é muito descarada e é pega no pulo, Bolsonaro adota a tática Donald Trump, afirmando que nunca disse o que efetivamente disse e chamando a imprensa de "fake news". Muitos de seus seguidores não se dão ao trabalho de checar em fontes confiáveis, preferindo acreditar em postagens anônimas de WhatsApp que confirmam sua visão de mundo, assumindo o comportamento "errado é quem discorda de mim".

Sobre esse assunto, gosto sempre de citar a filósofa alemã Hanna Arendt. "O que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte". Para ela, a propaganda totalitária prospera nesse clima de fuga da realidade para a ficção.

Aliás, a fuga é, como diz a autora, um antídoto contra um mundo no qual o acaso é o senhor supremo e no qual os seres humanos precisam se adaptar constantemente. Diante da arbitrariedade da vida, muitos acabam por curvar-se à coerência fictícia da ideologia de um líder não porque são estúpidas ou perversas, mas porque essa fuga é uma questão de sobrevivência pessoal.

Qual a consequência de tudo isso hoje? Em um mundo ultrapolarizado, em que cada um acredita naquilo que seu líder apontar como verdade, estamos parando de compartilhar uma percepção comum de realidade, deixando de acreditar em um pacote comum de fatos. O que é premissa para a vida em sociedade.

Temos direito às nossas próprias opiniões, mas não aos nossos próprios fatos. Mas, convenhamos, devido à deficiência de educação para a mídia, temos mais pessoas que sabem diferenciar maminha de picanha, do que notícia de opinião.

Imagine viver em lugar em que não mais se distingue verdade e mentira? Nesse caso, perdemos a capacidade de cooperar por um bem comum, pois se torna impossível definir qual seria esse bem comum. As instituições perdem a credibilidade e são incapazes de resolver conflitos. A saída, invariavelmente, acaba sendo um autoritário que aparece para dar sentido às coisas e colocar ordem no caos.

Por mais críticas possamos ter ao jornalismo é ele quem, com todos os seus acertos e defeitos, nos últimos 200 anos, se desenvolveu para pautar e organizar debates da esfera pública. Se por um lado, as redes sociais trouxeram a possibilidade de mais pluralidade e democracia a esse processo de pauta, por outro abriram caminho para o envenenamento do debate público.

Como tirar a água suja do banho sem jogar a criança fora é a grande pergunta. Começa com Terra plana e movimento antivacinação, passa por remédios apresentados como elixires mágicos contra a covid e a defesa de que imagens de satélites mentem. A pedra foi solta e já rola ladeira abaixo.

"O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade", disse o escritor Umberto Eco. O problema é que o idiota da aldeia quer sempre mais.

Leonardo Sakamoto, articulista do UOL