Hoje, esse grupo, que não inclui os assalariados rurais, podem se aposentar aos 60 anos (homens) e 55 (mulheres), com 15 anos de comprovação de atividade no campo. A Constituição Federal, em artigo 195, parágrafo 8º, prevê o recolhimento de imposto previdenciário no momento da comercialização da produção.
Pela proposta do governo, a idade das mulheres sobe cinco anos e se equipara à dos homens e o tempo de trabalho vai a 20 anos para ambos. Contudo, se o valor arrecadado no momento da venda dos produtos não atingir um patamar mínimo, o núcleo familiar terá que completar o valor até chegar a uma contribuição anual de R$ 600 à Previdência.
Pode parecer pouco. Mas lembre-se que a atividade rural está exposta a uma série de fatores como sol, chuva, clima, ataque de pragas, variação do preço do produto (que, às vezes, não paga nem o custo da produção). Não raro, ao final de um ano, a renda líquida é insuficiente até para a sobrevivência, sendo necessário suporte de programas como o Bolsa Família.
Ou seja, o pagamento de R$ 600 para o núcleo familiar pode ser impraticável. De acordo com a proposta, "na hipótese de não ser recolhido o valor mínimo anual da contribuição previdenciária do grupo familiar (…), o período correspondente não será considerado como tempo de contribuição ao Regime Geral de Previdência Social". E serão necessários 20 "períodos" para a aposentadoria.
Outra questão é o recolhimento do imposto previdenciário em si. Apesar de estar previsto para acontecer no momento da venda, hoje nem sempre essa alíquota (de 1,2% sobre a receita bruta) é recolhida em nome do trabalhador. As razões vão desde problemas burocráticos (falta de fiscalização do repasse da alíquota descontada pela pessoa jurídica compradora em nome do trabalhador, por exemplo), passando pela própria natureza da atividade (quando perde-se a safra por seca ou geada ou quando ela não gera excedente para comercialização) até quando as vendas acontecem na informalidade (diretamente ao consumidor, sem uma maneira simples de recolher o imposto).
Antes de implementar a exigência da comprovação da contribuição, o governo deveria resolver os problemas do processo de arrecadação. A atual administração tentou um movimento nesse sentido, mas acabou ministrando um remédio que pode acabar matando o paciente ao invés de curá-lo. Em 18 de janeiro deste ano, foi editada a Medida Provisória 871 sob a justificativa de coibir fraudes na concessão de auxílios, pensões e benefícios. Ela define que, a partir de janeiro de 2020, será necessário que o trabalhador esteja cadastrado no Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS) para pleitear a aposentadoria especial rural.
Em tese, o CNIS permite identificar quem são os segurados na área e demandar que eles informem sistematicamente os dados de venda de seus produtos, quando elas acontecerem. Dessa forma, realmente seriam evitadas fraudes (como o recebimento do benefício por pessoas que não são do campo) e sonegação (na contribuição) de empresas que compram a produção familiar. Porém, uma boa parte dos trabalhadores rurais da agricultura familiar está fora do CNIS e inclui-los será uma tarefa difícil.
Evandro Morello, assessor jurídico da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) afirma que o governo dispensou a participação de sindicatos (que estariam mais próximos do agricultor) no processo de cadastramento dos segurados especiais rurais e de atualização dos dados anualmente. E afirmou que contará apenas com o apoio de órgão públicos federais, estaduais e municipais, que não estão necessariamente conectados e estruturados para realizar tal tarefa em tão pouco tempo. Segundo ele, só isso pode excluir cerca de 80% das pessoas que pleiteariam aposentadorias rurais no ano que vem devido à quantidade de pessoas fora do cadastro.
"A contribuição sobre a produção deve se aperfeiçoar, interligando os sistemas de arrecadação dos Estados e da União. Isso seria importante, inclusive, para identificar os produtores. Precisa melhorar a formalização do processo, mas não há nada estruturado no país, com exceção de algumas experiências locais", explica.
Ou seja, além do governo Bolsonaro propor a obrigatoriedade de um recolhimento mínimo de imposto de famílias que, muitas vezes, não têm renda líquida da produção nem para comprar roupas e comida devido à imprevisibilidade de sua atividade, parte dos trabalhadores não estão devidamente cadastrados e os sistemas não estão conectados e preparados, nada apontando que estarão a tempo. Tudo isso dificulta a aposentadoria.
O destino deles pode acabar sendo o Benefício de Prestação Continuada (BPC), a assistência aos idosos em condição de miserabilidade. Não admira, portanto, que o governo esteja propondo estender de 65 para 70 anos a idade mínima para pleitear o recebimento de um salário mínimo mensal, entregando, em troca, uma insuficiente compensação de R$ 400,00 a partir dos 60 anos. Sabe que haverá sobrecarga de grupos que não mais conseguirão se aposentar.
Tudo isso sem contar que a Reforma da Previdência também quer equiparar a idade mínima entre homens e mulheres no campo enquanto mantém uma diferenciação de 65 e 62 anos, respectivamente, para outras categorias. Considerando que a vida no campo tende a ser mais penosa que na cidade, isso não faz sentido.
A mudança da aposentadoria especial rural é uma das mais sensíveis na reforma, junto com a mudança no BPC. É provável, portanto, que tenham sido pensadas pelo governo como um "bode na sala", uma "moeda de troca", uma "gordura para queimar" na negociação do restante da reforma. Caso contrário, Bolsonaro deve enfrentar problemas, pois além da oposição, parlamentares de Estados do Nordeste, onde essa aposentadoria e o BPC são especialmente importantes para a economia local, vão bloquear a aprovação de outros pontos.
Para Morello, no final, isso se resume a uma questão que o país deveria refletir. "A sociedade quer dar opção para que o agricultor da economia familiar fique no campo produzindo alimentos para ela? Pois a aposentadoria rural é uma das políticas que têm incentivado manter as pessoas no campo. Uma alteração drástica será catastrófico para os municípios pobres rurais. As famílias podem começar a repensar se devem se manter no campo, trazendo êxodo rural e reduzindo a produção de alimentos".
Leonardo Sakamoto é jornalista e articulista do UOL